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Da outra violência

Da outra violência

      Desde que os estudantes do Estado de São Paulo iniciaram sua empolgante, organizada, criativa e vitoriosa campanha de combate ao famigerado decreto de “Reestruturação do Ensino do Estado de São Paulo”, levado a cabo pelo Governador Geraldo Alckmin (PSDB) e pelo Secretário da Educação Herman Voolward (agora, “EX”); tenho acompanhado, estarrecido, a crescente truculência da polícia militar durante os protestos legítimos destes jovens corajosos e brilhantes.

      As imagens da violência policial não saem da minha cabeça, não param de me atormentar. Eu sangro, mesmo sabendo que são necessárias; necessárias para evidenciar a brutalidade desta falida administração que se arrasta, mumificada, a mais de vinte anos no poder, vítima de seus próprios anacronismos, de suas incoerências e de suas contradições. Em outros tempos, não muito distantes, estas mesmas imagens de alunos apanhando de soldados fortemente armados se perderiam nos porões escuros da história. Muito se falou delas.

      Agora, vamos à outra violência. Acontece que estas mesmas câmeras denunciaram também o avanço acelerado do sucateamento da rede de escolas públicas do Estado de São Paulo. Ambientes destruídos, escuros e sujos; material didático empilhado e desperdiçado; espaços destinados à prática de atividades esportivas sem nenhuma conservação; e muito mais. Cenas rotineiras para quem frequenta estes espaços, mas que até agora, eram sonegadas pelas nossas lentes. Essa, sem sombra de dúvidas, é a maior violência de todas: a violência do abandono.

      Somente alcançamos este quadro graças a uma bem estruturada e audaciosa rotina de “cortes”, gerida por burocratas assépticos e despreparados (estilo Padula) que, não satisfeitos com o sucateamento paulatino, decidiram, desta vez, optar por uma inédita e impactante solução para a diminuição dos gastos educacionais no Estado de São Paulo: fechar escolas.

      Todos esses cortes, ao longo dos anos, seguindo a suja estratégia da “guerra da informação”, foram bem programados e divulgados apropriadamente (como este, no final do ano passado, quando os alunos da rede pública do Estado de São Paulo ficaram sem “papel higiênico”: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2014/12/1556283-alckmin-corta-verba-de-escolas-paulistas-destinada-a-limpeza-e-obras.shtml>) a fim de promover, com a total desinformação dos envolvidos no processo, a típica anuência silenciosa da comunidade escolar, que, em verdade, não foi consultada nem informada de nada (duvido que alguma criança ou adolescente, se consultados, abririam mão do papel higiênico). Assim se configura a  “gestão tirânica da educação” promovida por esta administração, alheia ao direito assegurado pela nossa própria Constituição Federal, que prescreve a participação democrática.

      E fico imaginando a alegria e o entusiasmo desta classe de gestores engravatados que tinham a certeza de que agora, fechando escolas, seriam embalados pelo mesmo silêncio desinteressado, pelo mesmo alheamento. Ledo engano.

      Não bastaram os eufemismos da grande mídia para o verbo “fechar”. Não foram suficientes os mantras entronizados ao longo destes anos que apresentam “o aluno como o grande culpado, pois não quer aprender”, “o pai do aluno como culpado, pois não participa”. Nada adiantou. Os alunos ocuparam a própria História.

      E, então, contrariando as previsões e o ego dos componentes do núcleo duro da Secretaria da Educação, o Governador, depois de ouvir os alunos e os pais de alunos por intermédio de diversos modelos sofisticados de cassetetes, decidiu, delicadamente, “suspender” a reorganização para o ano que vem.

      No seu discurso, iniciado com uma frase papal prescrevendo o diálogo e a mútua compreensão acima de tudo (que Francisco não saiba disso!), afirmou que o processo será construído de maneira democrática e que no próximo ano letivo, em atitude inédita (outra), o governo visitará cada escola da rede para explicar e colher sugestões e argumentos sobre o processo de reestruturação. A menos que desista de fechar escolas, será tempo e dinheiro desperdiçado.

      A reestruturação imposta por decreto pelo Governador Geraldo Alckmin não chegou ao fim. Os cortes não chegaram ao fim. Os Padulas não chegaram ao fim. As assinaturas compradas da revista Veja pelo Estado para distribuir nas escolas não chegaram ao fim. Os projetos milionários sem continuidade (como o caderno de DAC – da Abril Educação, quando era ainda do Grupo Abril) não chegaram ao fim. As diretorias de ensino que não desempenham nenhum papel no processo educacional que não o de representarem politicamente, com mão de ferro, o governo em cada região (totalmente obsoletas em tempos digitais) não chegaram ao fim. As apostilas mal feitas com o emblema da gestão atual para substituir apropriadamente o livro didático enviado pelo governo federal e que fica de escanteio não chegaram ao fim. O enorme índice de exonerações mensais de professores igualmente sucateados não chegou ao fim.

      Depois disso tudo, ao que parece, a única coisa que mudou foi a atitude destas crianças e adolescentes que, agora, para o desespero do Palácio dos Bandeirantes, decidiram se apoderar deste processo, tornando-se dignos protagonistas de sua educação. Essa “abertura” não tem mais volta.

Prof. Rafael Puertas de Miranda , 05/12/2015

www.oleitordesimesmo.blogspot.com.br

Professores ou Proletários? A Escola como fábrica.

Professores ou Proletários? A Escola como fábrica

Publicado em Passa Palavra, 13 de abril de 2009

Este texto é o resumo de uma formação e debate com militantes sindicais de base da APEOESP, ocorrida em novembro de 2008. Discute a proletarização da profissão docente, o papel da escola dentro da cadeia de produção capitalista, a fragmentação do pessoal docente e a consciência que os professores tem de si próprios. Por Otto João Leite

“Educação não é mercadoria”. “Reformas neoliberais estão nos atacando”. “Querem avaliar nosso desempenho”. Tais afirmações, que descrevem nossa situação atual, precisam ser analisadas em sua essência comum, para que possamos entender a nossa situação e lutar.

pinkfloydthewallAs manifestações artísticas possuem o dom de expressar pela estética o que as teorias consomem grandes volumes para demonstrar. O filme The Wall (1982), produzido pelo Pink Floyd, retrata em uma parte a cena duma escola, como uma produção em série de alunos-mercadorias homogêneos, que enfim, desabam da esteira da linha de produção dentro duma imensa máquina de moer carne. Mas os alunos decidem no final se revoltar e incendeiam a escola. A arte muitas vezes antecipa fenômenos sociais reais.

Marx, há 140 anos, em sua obra principal, O Capital, analisou o funcionamento da sociedade capitalista em suas estruturas e mecanismos. Sua descoberta fundamental foi a de que vivemos em uma sociedade cuja essência é a mercadoria, onde tudo se torna mercadoria, a começar pelas coisas fundamentais da vida – a terra, os meios de produção (instrumentos de trabalho) e a própria força de trabalho do homem (o próprio indivíduo vira mercadoria, um “proletário”). O capitalismo é um processo de mercantilização, de transformação de tudo em mercadoria. Essa mercantilização significa a acumulação de Capital e a proletarização das pessoas.

Aí entra a segunda descoberta de Marx. De onde vem o Capital? O Capital é uma acumulação de dinheiro com um fim em si mesmo, onde tanto dinheiro se investe para produzir mercadorias e estas se trocam por mais dinheiro (D – M – D’), num processo sempre ampliado e descontrolado, de profunda irracionalidade (e consequências destrutivas). Marx descobriu que o valor das mercadorias é determinado socialmente pelo tempo de trabalho em média necessário à produção das mesmas, em toda a sociedade. Essa “lei do valor”, que não podemos ver, mas que existe e domina a sociedade como uma lei da gravidade (embora seja criação dos homens e não seja natural, é uma força inconsciente), é o regulador das altas e baixas dos preços, da produção, da troca, do consumo, da distribuição dos bens e dos ciclos de expansão e crise econômica. Desaparece, assim, todo o mistério do “mercado”, do “capital” e de suas crises, que se apresentam como seres vivos enfeitiçados, mas são na verdade produto de relações sociais entre homens.

profesproletariosimagemcompletaphpSe o valor é o tempo de trabalho, só o trabalho humano cria valor novo. Marx descobriu que todo lucro, renda e juros são originados do trabalho humano na produção de bens e serviços como mercadorias (como bens produzidos para a troca, e não para o uso). Como os trabalhadores são despossuídos de meios de produção (local de trabalho e instrumentos de trabalho são propriedade privada), são obrigados a vender sua força de trabalho como mercadoria para as empresas, em troca de salário para sobrevivência. Ocorre que, dessa forma, os trabalhadores não têm controle nenhum sobre os meios de produção nem sobre seu trabalho, e assim são coagidos a produzir um valor maior do que recebem como salário. Isso Marx chamou de mais-valia (mais-valor), que são as horas de trabalho não-pagas (exploradas) que o capitalista extrai do trabalhador. Daí surge o Capital, sua expansão, sua acumulação e suas crises. E a luta de classes, que é a luta dos trabalhadores pelo controle do tempo, das condições de trabalho e do próprio trabalho, para reduzir ou neutralizar a exploração. O capital é, assim, não uma quantidade de dinheiro, mas uma relação social entre homens, movida através da exploração e do conflito de classes.

Admitindo isso, logo descobrimos que nós, professores, somos trabalhadores, e trabalhadores que produzem uma mercadoria muito especial, que é o coração do capitalismo, pois é a única que tem a propriedade de criar valor (mais-valia): a força de trabalho. Somos trabalhadores que produzem trabalhadores. O Capital soube incorporar a educação à sua lógica, de forma a criar sistemas de ensino que funcionam como empresas produtoras de trabalhadores em série, para atender às demandas de mão-de-obra do mercado para a acumulação de Capital.

alunoswall2O professor exerce esse trabalho, incutindo nos alunos as duas características básicas da força de trabalho: a disciplina e as qualificações. Como o processo capitalista de trabalho é um processo de exploração, ele exige uma dose igual de opressão sobre o proletário empregado como “mercadoria viva”. A escola entra como uma instituição disciplinar e repressiva na medida em que interioriza no aluno, desde criança, a obediência a hierarquias, horários, controles de presença, notas e o desempenho de tarefas pré-determinadas, quantificadas, etc. E depois, atua como qualificadora, na medida em que habilita o aluno, como futuro trabalhador, a exercer trabalho mais simples ou mais complexo (o aluno aprendendo mais ou menos habilidades). Sendo assim, o trabalhador mais qualificado exerce trabalho mais complexo e produz muito mais valor (mais-valia) do que o trabalhador menos qualificado. Dessa maneira, o sistema de ensino vira um espelho das exigências do mercado de trabalho. Como este possui, cada vez mais hoje, uma hierarquia onde uma minoria cada vez mais reduzida de trabalhadores exerce trabalho produtivo qualificado (e por conseqüência bem remunerado e com direitos), e uma maioria composta de trabalhadores precarizados, terceirizados e mal remunerados (de menor qualificação), ou mesmo desempregados, o sistema de ensino passa a refletir essa hierarquia. As universidades e as escolas técnicas formam o primeiro grupo, mais qualificado e restrito, e o ensino público de massas forma o segundo grupo, dos precarizados e do exército de reserva (segue daí que quanto mais se expande o número de pessoas com diploma, a oferta de força de trabalho cresce em relação à demanda e os salários se tornam mais baixos). A deterioração das condições de trabalho da maioria da população se reflete na deterioração das condições da escola pública. A tão alardeada “educação universal” ou o discurso da educação para todos, que os governos defendem, em nenhum momento diz que essa educação deva ser de nível igual para todos.

Como podemos ver, nós professores das escolas públicas somos, na verdade, trabalhadores produtivos (proletários). Embora juridicamente nosso empregador seja o Estado, na medida em que produzimos trabalhadores (o “capital humano”), estamos inseridos na cadeia de produção das empresas que os empregam (telemarketing, indústrias, supermercados, etc); e nosso trabalho é produtor de mais-valia, uma vez que é organizado segundo as relações de trabalho e a lógica de empresa. Isso explica também porque cada vez mais é aplicada na escola a lógica de empresa em sua organização interna. Não é o estatuto jurídico que determina se há ou não exploração ou geração de valor, mas o lugar ocupado no processo de produção e a forma de organização do trabalho. Ou seja, o professor da escola pública também é explorado, como o da escola privada (embora na escola privada esta exploração seja mais intensa e com menos proteção trabalhista). O Estado (no sentido de estado restrito, nacional) não se apresenta como uma esfera externa à valorização do capital, mas como um aparelho que faz parte dela, é um momento dela, e está inserido nos ciclos de produção e reprodução do valor.

alunos-the-wallAs escolas são cada vez mais invadidas pela lógica de produção de mercadorias, e nosso trabalho é organizado como na indústria. Cada vez mais as tarefas são padronizadas rigidamente e nosso trabalho é medido e avaliado quantitativamente. A escola está sendo “taylorizada” (taylorismo é o sistema tradicional de gestão de indústria, extremamente opressivo, do qual o “toyotismo” é só um derivado), e é invadida por um surto quantitativista, onde a última panacéia é a “avaliação de desempenho” e a “meritocracia” (antes predominava uma organização burocrática de cunho fayloista [baseado na administração segundo Henri Fayol], mas o aspecto quantitativo do taylorismo tem sido reforçado). Os diretores são transformados em gestores e tem um poder repressivo de controle reforçado. Cada vez mais somos realmente operários. Nossas tarefas são padronizadas como numa indústria e somos despojados de qualquer controle sobre nossas condições de trabalho (a padronização de currículos e materiais nada mais é do que isso, o sistema Taylor aplicado na educação). O aumento da pressão por disciplina e resultados dentro duma escola significa o mesmo que aumentar a velocidade de uma linha de montagem. A opressão das condições de trabalho cresce tanto que os professores desencadeiam uma série de mecanismos defensivos para não serem destruídos fisicamente – faltas (absenteísmo), licenças médicas, trabalhar mais devagar, “macetes”, etc. Tal processo é idêntico à resistência generalizada que ocorre dentro de fábricas, onde os operários espontaneamente derrubam a intensidade e velocidade da produção como forma de resistência à exploração e intensificação do trabalho. Mas este não é um processo consciente (por enquanto), são formas de resistência individuais e passivas (que passaram a predominar como reação defensiva após o desmantelamento do movimento sindical docente no Estado de São Paulo, na greve de 2000; e a atual revolução tecnocrática aplicada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo é também uma resposta a essa resistência passiva, uma tentativa de reestruturação da educação, que inclusive funciona como laboratório do Banco Mundial, para sua implementação mais ampla).

profesproletarios1phpNa medida em que trabalhamos com um setor da população (alunos e suas famílias) cada vez mais sujeito ao trabalho precarizado ou ao desemprego, a escola pública assume cada vez mais uma função meramente disciplinar e repressiva (função de controle social sobre os “não-rentáveis”). Os empregos que recebe a maioria de nossos alunos são empregos de baixa qualificação – onde se exige um perfil de trabalhador muitas vezes analfabeto funcional (por exemplo, supermercados, cadeias de lanchonetes). Não é de surpreender o crescimento do analfabetismo funcional, nem tampouco é nossa culpa. Dentro dessas condições opressivas, de escola fabril-carcerária, os alunos reagem com um surto espontâneo de indisciplina – eles percebem, inconscientemente, o não-futuro que o mercado lhes reserva, e passam a se “auto-sabotar” enquanto mercadorias em produção, se auto-imolando. Atacam as estruturas disciplinares e repressivas da escola, e percebem que o mercado de trabalho não vai lhes dar a inserção social que a escola lhes promete ideologicamente (existem outros fatores que causam a indisciplina, como a desintegração familiar, e o deslocamento de atividades formativas para o lazer eletrônico, mas as relações de trabalho são o fator de peso). Somos cada vez mais recrutados para gerir a falência do sistema de ensino gerada pela falência do mercado de trabalho.

Dentro desse âmbito, nós professores cada vez mais ficamos “espremidos”, entre de um lado a revolta dos estudantes e de outro o Estado gerencial, que trata a escola como empresa e impõe cada vez mais a lógica de produção de mercadorias, quantitativa e fabril, ao nosso trabalho.

De uma maneira geral, temos uma dificuldade muito grande em nossas mobilizações, porque a categoria docente (no Brasil e especialmente no Estado de São Paulo) está fortemente desunida e fragmentada, sem uma identidade coletiva (e essa passividade é a grande causa do enfraquecimento e burocratização dos sindicatos). Gostaria aqui de analisar um dos fatores principais disto – a falta de consciência de nossa própria condição social. Como acima analisamos, nós professores somos trabalhadores inseridos no circuito de produção capitalista, e produtores de mercadorias, ou seja – proletários que produzem valor. Mas entretanto, nossa categoria se enxerga como “classe média”, devido a ter um certo consumo de bens sustentado no sistema de crédito e endividamento. A categoria “classe média”, na verdade, é muito mais uma invenção jornalística do que propriamente um ser social real. Se considerarmos classes sociais apenas pela análise superficial por nível de consumo, então temos classes “A, B, C, D, etc”. Mas se procedemos a uma análise estrutural como acima fizemos (pela posição que os indivíduos ocupam no processo de produção), percebemos que a sociedade é rigidamente dividida em dois campos: capitalistas (burguesia e gestores) e trabalhadores. E nós ocupamos o segundo campo, como trabalhadores que produzem trabalhadores. Portanto, não somos “classe média” nem em sonho, embora a mentalidade predominante na categoria docente seja essa.

Com tal percepção de nossa posição no processo de produção, podemos entender muitas coisas – porque cada vez mais nosso trabalho é submetido a uma ditadura da produtividade, porque a opressão no local de trabalho cresce, porque nossos salários são achatados, porque enfrentamos a revolta dos estudantes. E a partir dessa percepção, podemos então fazer as opções: é isso que queremos? Concordamos com essa lógica de empresa? Como mudar as regras do jogo? É possível parar essa engrenagem?

entre-les-murs-15-10-2008-6-gTorna-se necessário pensar estrategicamente nossa posição no processo, para que possamos combinar nossas lutas com lutas sociais de outros setores – por exemplo, ganhando a solidariedade dos alunos e da comunidade escolar, rompendo o corporativismo – só assim nossas reivindicações ganharão algum apoio na sociedade. Entretanto, cabe aqui relatar um caso. Quando o movimento dos trabalhadores sem-teto fez uma das maiores ocupações de sua história (a Ocupação João Cândido), a escola vizinha do terreno ocupado foi fechada por alguns dias por “medo dos sem-teto”. Estes, na ocupação, montaram várias cozinhas comunitárias e organizações comunitárias e solidárias de apoio mútuo. O engraçado é que ninguém pensava em fechar a escola antes da ocupação, quando o terreno era controlado por traficantes e assaltantes. Outra vez, em manifestação de professores (na luta contra o Fundo de Pensão SP-PREV, em 2007), os sem-teto vieram marchar em apoio aos professores, mas muitos professores se afastaram da manifestação horrorizados com isso, demonstrando um sentimento de nojo ou ranço classista. Talvez porque se enxerguem ainda como “classe média”, e ainda não perceberam que ali, no movimento popular, estão justamente nossos alunos e suas famílias, futuros trabalhadores que nós produzimos cotidianamente, cada vez mais precarizados e desempregados pela chamada “lei geral da acumulação capitalista” (Marx). É essa a grande contradição de boa parte dos docentes das escola públicas de São Paulo: lecionam para os pobres e em condições proletarizadas, mas possuem uma mentalidade e ideologia anti-pobre. É comum encontrar muitos que defendem a implementação de grades, câmeras e a repressão aos estudantes nas escolas; também muitos defendem idéias conservadoras e até fascistóides, como o endurecimento do Estado sobre os pobres nas favelas, a repressão aos movimentos sociais, detestam o MST, defendem pena de morte, redução da idade penal, e não é raro encontrar alguns que ainda defendam a ditadura militar ou sejam preconceituosos com alunos homossexuais. No final, esta mentalidade é uma construção midiática e de uma situação social de consumo artificial e de ideologia da ascensão social; revela um setor social que está se proletarizando, mas ainda não quer assumir, então adota os valores dominantes e um discurso ressentido como reação. Mas justamente a representação espetaculosa como “classe média” se constrói encima das contradições reais reprimidas e como negação ilusória da miséria da vida cotidiana. Os próprios professores efetivos olham os temporários de cima para baixo e muitas vezes não se misturam (e o mesmo aos “eventuais”). A mesma clivagem ocorre, de forma mais grave, em relação a funcionários de escola (que possuem na maioria das escolas sala separada da dos professores, ganham salários mais baixos e são submetidos a contratos precários), e ainda mais forte em relação a alunos e comunidade escolar. Mesmo quando em uma ou outra escola, a comunidade consegue se mobilizar e retirar as grades, estas persistem no cérebro dos docentes e gestores escolares. Parece reinar nas escolas a mesma mentalidade conservadora das senhoras de colar de bolas e cabelos de panetone que povoam os gabinetes dos departamentos de educação e diretorias de ensino.

Nas greves, há pouca adesão: a maioria não adere, pois estão endividados, ou porque tem contas a pagar, além de uma fragmentação e desunião do pessoal docente. Entretanto, a maioria procura os sindicatos todos os dias (APEOESP e CPP), para resolver problemas individuais com advogado (como bônus, licença-prêmio, sexta-parte, qüinqüênios, convênios). Acabam por enxergar o sindicato como empresa prestadora de serviços e não como ferramenta de lutas (muitos dizem: “Eu pago a APEOESP para lutar por mim”). E o sindicato reflete esta passividade da base, funcionando de fato como escritório assistencialista na maior parte do tempo (salvo em algumas subsedes e grupos mais combativos que fazem oposição a essa política). Cabe lembrar que muitos professores, embora troquem de carros novos sempre (e o fazem através de dívidas e financiamentos astronômicos), não possuem casa própria e pagam aluguel, e sonham com um apartamento num programa de habitação. Ou seja, o status de classe média é altamente ilusório.

entre_les_murs3Um caminho crucial para termos êxito em nossas lutas seria, primeiro, assumirmos nossa condição social e que a categoria docente já está proletarizada. A partir daí, enxergando essa condição social de sermos trabalhadores, podemos compreender a condição comum que temos socialmente com outros setores, como nossos alunos e suas comunidades, que também são trabalhadores (precarizados). Também podemos, assim, compreender que os ataques que estamos sofrendo por parte do Estado são os mesmos que toda a classe trabalhadora sofre internacionalmente sob as novas condições de crise capitalista, que desencadeia uma epidemia de cortes de gastos tanto nas empresas como no Estado (isto é a raiz do neoliberalismo). Compreendendo isso, podemos desenvolver uma solidariedade comum e lutas comuns com outros setores, bem como buscar estratégias cotidianas para transformar as formas de resistência individuais e passivas do professorado em formas de luta coletivas e ativas contra a lógica de empresa e a mercantilização da educação. Peça-chave nisto é a construção de relações de luta coletivistas e solidárias nos locais de trabalho, para o enfraquecimento da lógica de empresa e da opressão gerencial. Isso passa também por uma mudança da relação com os alunos. São eles “material humano” a ser consumido no processo de produção capitalista como combustível? Podemos modificar essa relação, formando trabalhadores mais resistentes e menos submissos a essa lógica? Queremos ser carcereiros nesse processo, sofrendo com isso todas as consequências que já conhecemos bem? Até onde esse agravamento das nossas condições de trabalho vai ser suportável?

Cabe ressaltar que a situação tensa dentro das escolas expressa as contradições sociais. É uma rebeldia nihilista e individualista por parte dos alunos, sem uma consciência ou um projeto, que se não se transformar em forma de reivindicação coletiva e organizada (como as lutas de estudantes do Chile), pode facilmente se degenerar em barbárie social (como já ocorre em muitas escolas). A saída do reforço da disciplina e da repressão só tende a tornar esse conflito mais violento. Deveríamos nos perguntar, se é possível criar relações mais horizontais e comunitárias entre professores, estudantes, funcionários e comunidade. Certamente, somente com essa recomposição da comunidade e da classe trabalhadora, seria possível construir um projeto de educação popular não-repressivo e que sirva como instrumento de resistência social, bem como uma consciência de classe, superando as representações espetaculosas sobre nossa condição. As escolas públicas, na medida em que formam amplos setores populares de precarizados e desempregados que circulam como trabalhadores nas mais diversas categorias profissionais, são pontos estratégicos para se desencadear um processo de resistência social. Mas como fazer isso, com a atual fragmentação dos docentes, bem como a conseqüente mentalidade conservadora dos docentes e um sindicalismo burocratizado, hierárquico, corporativista, preso aos egoísmos profissionais, e trampolim de carreiras eleitorais? É preciso ter um projeto de educação popular em nível de classe trabalhadora. E isso só é possível a partir do momento em que houver uma recomposição de classe, superando essas fragmentações ou divisões hierárquicas – entre professores estáveis, temporários, eventuais, funcionários, alunos, pais, comunidade escolar, e movimentos sociais, formando relações de solidariedade – algo que só pode ser obtido através de uma atuação mais cotidiana nas escolas e comunidades, e não através de ações barulhentas e bombásticas de grupos minoritários (que mais expressam a crise e ausência de um movimento real). Essa é a pré-condição para recuperar a luta pela educação.

Resumindo, nós, professores, estamos inseridos dentro do processo de produção capitalista – que não ocorre só dentro de empresas, mas em toda a sociedade como uma imensa “fábrica social” – e carregamos disso todas as consequências opressivas. É contra essa lógica que temos de lutar.

Relações de Poder na Escola

Relações de Poder na Escola

Reproduzimos aqui o brilhante texto de Maurício Tragtenberg, de 1985, que permanece impressionantemente atual em face das lutas travadas na Educação Pública.

Professores, alunos, funcionários, diretores, orientadores. As relações com todos estes personagens no espaço da escola reproduzem, em escala menor, a rede de relações que existe na sociedade.

Isso não é novidade. O que interessa é conhecer como essas relações se processam e qual o pano de fundo de idéias e conceitos que permitem que elas se realizem de fato. A nós interessa analisar a escola através de seu poder disciplinador. Conforme diz o pensador francês Michel Foucault, a escola é o espaço onde o poder disciplinar produz o saber.

Essa situação surgiu no século XIX com a instituição disciplinar que consiste na utilização de métodos que permitem um controle minucioso sobre o corpo do cidadão através dos exercícios de domínio sobre o tempo, espaço, movimento, gestos e atitudes, com uma única finalidade: produzir corpos submissos, exercitados e dóceis. Tudo isso para impor uma relação de docilidade e utilidade.

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Na escola, ser observado, olhado, contado detalhadamente passa a ser um meio de controle, de dominação, um método para documentar individualidades. A criação desse campos documentário permitiu a entrada do indivíduo no campo do saber e, logicamente, um novo tipo de poder emergiu sobre os corpos.

Os efeitos do poder se multiplicam na rede escolar devido à acumulação cada vez maior de novos conhecimentos adquiridos a partir da entrada dos indivíduos no campo do saber. Conhecer a alma, a individualidade, a consciência e comportamento dos alunos é que tornou possível a existência da psicologia da criança e a psico-pedagogia.

As áreas do saber se formam a partir de práticas políticas disciplinares, fundadas na vigilância. Isso significa manter o aluno sob um olhar permanente, registrar, contabilizar todas as observações e anotações sobre os alunos, através de boletins individuais de avaliação, ou uniformes-modelo, por exemplo, perceber aptidões, estabelecendo classificações rigorosas.

A prática de ensino em sua essência reduz-se à vigilância. Não é mais necessário o recurso à força para obrigar o aluno a ser aplicado, é essencial que o aluno, como o detento, saiba que é vigiado. Porém há um acréscimo: o aluno nunca deve saber que está sendo observado, mas deve ter a certeza de que poderá sê-lo sempre.

As normas pedagógicas têm o poder de marcar, salientar os desvios, reforçando a imagem de alunos tidos como ‘problemáticos’, estigmatizados como o ‘negrão’, o ‘índio’, o ‘maloqueiro’ ou o morador da ‘favela’. A escola, ao dividir os alunos e o saber em séries, graus, salienta as diferenças, recompensando os que se sujeitam aos movimentos regulares impostos pelo sistema escolar. Os que não aceitam a passagem hierárquica de uma série a outra são punidos com a ‘retenção’ ou a ‘exclusão’.

A escola se constitui num centro de discriminação, reforçando tendências que existem no “mundo de fora”. O modelo pedagógico instituído permite efetuar vigilância constante. As punições escolares não objetivam acabar ou  ‘recuperar’ os infratores. Mas, ‘marcá-los’ com um estigma, diferenciando-os dos ‘normais’, confiando-os a grupos restritos que personificam a desordem, a loucura ou o crime.

Dessa forma a escola se constitui num observatório político, um aparelho que permite o conhecimento e controle perpétuo de sua população através da burocracia escolar, do orientador educacional, do psicólogo educacional, do professor ou até dos próprios alunos.

É a estrutura escolar que legitima o poder de punir, que passa a ser visto como natural. Ela faz com que as pessoas aceitem tal situação. É dentro dessa estrutura que se relacionam os professores, os funcionários técnicos e administrativos e o diretor.

É necessário situar ainda que a presença obrigatória com o ‘Diário de Classe’ nas mãos do professor, marcando ausências e presenças nuns casos, atribuindo “meia falta” ao aluno que atrasou uns minutos ou saiu mais cedo da aula, é a técnica de controle pedagógico burocrático por excelência herdada do presídio. Esse professor é visto como encarregado de uma ‘missão educativa’ por uns; como ‘tira’ e ‘cão de guarda’ da classe dominante por outros, ‘contestador e crítico’ por muitos.

Não há dúvida que a escola, em qualquer sociedade, tende a renovar-se e ampliar seu âmbito de ação, reproduzir as condições de existência social formando pessoas aptas a ocupar os lugares que a estrutura social oferece. Com a religião e o esporte, a educação pode se constituir num instrumento do poder e, nessa medida, o professor é o instrumento da reprodução das desigualdades sociais em nível escolar.

No seu processo de trabalho, o professor é submetido a uma situação idêntica ao proletário, na media em que a classe dominante procura associar educação ao trabalho, acentuando a responsabilidade social do professor e de seu papel como guardião do sistema. Nesse processo o professor contratado ou precário (sem contrato e sem estabilidade) – mais de 85 mil só no Estado de São Paulo – substitui o efetivo ou estável, conforme as determinações do mercado, colocando-o numa situação idêntica ao proletário.

O professor é submetido a uma hierarquia administrativa e pedagógica que o controla. Ele mesmo, quando demonstra qualidades excepcionais, é absorvido pela burocracia educacional para realizar a política do Estado, portanto, da classe dominante em matéria de educação. Fortalecem-se os célebres ‘órgãos’ das Secretarias de Educação em detrimento do maior enfraquecimento da unidade escolar básica.

Na unidade escolar básica é o professor que julga o aluno mediante a nota, participa dos Conselhos de Classe onde o destino do aluno é julgado, define o Programa do Curso nos limites prescritos, prepara o sistema de provas ou exames. Para cumprir essa função ele é inspecionado, é pago por esse papel de instrumento de reprodução e exclusão.

É nas escolas particulares de classe alta, ao ultrapassar a entrada do colégio que o professor perde seus direitos em função das normas impostas e do papel a desempenhar. Mestres e alunos submetem-se a esse inconsciente coletivo transmitido por herança cultural: um ‘respeitável’ professor não fala de sua vivência pessoal por temer ser considerado medíocre. O aluno, por sua vez, espera do professor certo tipo de comportamento, seu desprezo ou sua admiração.

A própria disposição de carteiras em sala de aula reproduz as relações de poder: o estrado que utiliza acima dos ouvintes, estes sentados em cadeiras linearmente definidas próximas a uma linha de montagem industrial, configuram a relação ‘saber/poder’ e ‘dominante/dominado’.

O professor subordina-se às autoridades superiores, essa submissão leva-o a acentuar uma dominação compensadora. Delegado dessa ordem hierárquica junto aos estudantes, ele é símbolo vivo dessa subordinação, o instrumento da submissão. Seu papel é impor a obediência. Na relação do professor com a classe, encontram-se dois adolescentes: o adolescente aluno a quem ele deve educar e o adolescente reprimido que carrega consigo.

O poder professoral manifesta-se através do sistema de provas ou exames onde ele pretende avaliar o aluno. Na realidade está selecionando, pois uma avaliação de uma classe pressupõe um contato diário com a mesma, prática impossível no atual sistema de ensino.

A disciplinação do aluno tem no sistema de exame um excelente instrumento: a pretexto de avaliar o sistema de exames. Assim, a avaliação deixa de ser um instrumento e torna-se um fim em si mesma. O fim, que deveria ser a produção e transmissão de conhecimentos, acaba sendo esquecido. O aluno submete-se aos exames e provas. O que prova a prova? Prova que o aluno sabe como fazê-la, não prova seu saber.

O fato é que, na relação professor/aluno, enfrentam-se dois tipos de saber, o saber do professor inacabado e a ignorância do aluno relativa. Não há saber absoluto nem ignorância absoluta. No fundo, os exames dissimulam, na escola, a eliminação dos pobres que se dá sem exame. Muitos deles não chegam a fazê-lo, são excluídos pelo aparelho escolar muito cedo, veja-se o nível de evasão escolar na 1ª série do 1º grau e nas últimas séries do 1º e 2º grau.

O exame permite a passagem de conhecimento do professor ao aluno e a retirada de um saber do aluno destinado ao mestre. O exame está ligado a certo tipo de formação de saber e a certo tipo de exercício de poder. O exame permite também a formação de um sistema comparativo que dá lugar a descrição de grupos, caracterização de fatos coletivos, estimativa de desvios dos indivíduos entre si.

Qualquer escola se estrutura em função de uma quantidade de saber, medido em doses, administrado homeopaticamente. Os exames sancionam uma apropriação do conhecimento, um mau desempenho ocasional, um certo retardo que prova a incapacidade do aluno em apropriar-se do saber. Em face de um saber imobilizado, como nas Tábuas da Lei, só há espaço para humildade e mortificação. Na penitência religiosa só o trabalho salva, é redentor: portanto, o trabalho pedagógico só pode ser sado-masoquista.

Não é por acaso que existe relação entre a estrutura simbólica da religião com a escolar. Elas reforçam a estrutura simbólica pela qual se realiza a estrutura de classe. A mesma relação de indignidade existente entre o pecador e a religião, é a existente entre os alunos e o saber. O aluno é visto como se tivesse uma essência inferior à do mestre, como o homem o é ante a figura de Deus.

O trabalho mortificante no plano pedagógico – a ansiedade em saber se foi aprovado ou reprovado no exame – é a via da redenção, a expiação da indignidade. É o único caminho pata atingir o Templo do Saber, da Graça e da Riqueza.

Para não desencorajar os mais fracos de vontade surgem os métodos ativos em educação. A dinâmica de grupo aplicada à educação alienou-se quando colocou em primeiro plano o grupo em detrimento da formação. A utilização do pequeno grupo como técnica de formação deve ser vista como uma possibilidade entre outras. Tal técnica não questiona radicalmente a essência da pedagogia educacional. O fato é que os grupos acham-se diante de um monitor; aqueles caracterizam o não saber e este representa o saber.

Ao invés de colocar como tarefa pedagógica dar um curso e o aluno recebê-lo, por que não colocá-lo em outros termos: em que medida o saber acumulado e formulado pelo professor tem chance de tornar-se o saber do aluno?

Vistos estaticamente a escola e o professor, ele aparece como guardião de um saber estratificado, como o sacerdote das salvaguardas educacionais, como o gerente de sua distribuição, como o profeta da necessidade do trabalho e do mérito vinculado a um esforço redentor, finalmente, da vontade que tudo salva.

Porém, há o outro lado da moeda. O professor é agente da reprodução social e, pelo fato de sê-lo, também é agente da contestação, da crítica. O predomínio das funções de reprodução e de crítica professoral dependem mais do movimento social e sua dinâmica, que se dá na sociedade civil, fora dos muros escolares.

Em períodos de mudança social, o professor, enquanto assalariado ou funcionário do Estado, se organiza contra a deterioração de suas condições de trabalho. Nesse momento ele contesta o sistema. Porém, para contestar o sistema é necessário estar inserido nele numa função produtiva.

É o que se dá com o operário. Reproduzindo o capital, ponto terminal do trabalho acumulado, tem ele condições de contestar o capital mediante sua auto-organização e ações práticas. Desvinculado da produção pouco pode fazer. Greve de desempregados é coisa difícil.

Por tudo isso a escola é um espaço contraditório: nela o professor se insere como reprodutor e pressiona como questionador do sistema, quando reivindica. Essa é a ambigüidade da função professoral.

A possibilidade de desvincular saber de poder, no plano escolar, reside na criação de estruturas horizontais onde professores, alunos e funcionários formem uma comunidade real. É um resultado que só pode provir de muitas lutas, de vitórias setoriais, derrotas, também. Mas sem dúvida a autogestão da escola pelos trabalhadores da educação – incluindo os alunos – é a condição de democratização escolar.

Sem escola democrática não há regime democrático; portanto, a democratização da escola é fundamental e urgente, pois ela forma o homem, o futuro cidadão.

MAURÍCIO TRAGTENBERG

Fonte: Educação & SociedadeRevista Quadrimestral de Ciências da Educação – Ano VII – Nº 20 – Jan/Abril de 1985 (1ª reimpressão – setembro de 1986). Campinas: CEDES/Unicamp; São Paulo: Cortez Editora, pp. 40-45.

A Resposta do Estado

A Resposta do Estado

Hoje o maior problema da educação pública não é o sucateamento, por mais duro que seja o impacto dos cortes orçamentais, ou mesmo uma metodologia “x” ou “y” que conceda maior suporte ao desenvolvimento das crianças e jovens, mas sim um sistema vertical, preestabelecido por fora e homogenizador, que engessa e automatiza todo o ambiente escolar, impede a apropriação dos espaços e impossibilita o surgimento do protagonismo dos agentes internos da escola; o que hoje chamamos de educação nada mais é do que um espaço geográfico desprovido de uma “cabeça pensante”, um “corpo desmiolado” que acima de tudo nos ensina a viver desorganizadamente em sociedade, o que, sem dúvida, é o elemento mais importante para perpetuação do “status quo”.E finalmente esse problema começa ganhar a luz do dia, graças ao movimento que parte dos secundaristas, atingindo toda a sociedade, e repensando a ocupação e apropriação dos espaços públicos, o que imediatamente coloca em cheque o papel das instituições, principalmente da escola. Desta forma, mesmo que ainda em curso, é possível afirmar que as ocupações já são de maior importância e impacto na sociedade do que a própria reorganização da rede pública; é um movimento que se sobrepõe à própria pauta, talvez o primeiro herdeiro dos controversos eventos de junho de 2013 que, sem dúvida, deixará uma herança incalculavelmente maior.

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A resposta do Estado para como devemos nos comportar em uma sociedade, precisa ser colocada em cheque, juntamente a todos os processos e instituições que o compõem. É preciso construir respostas autônomas, orgânicas e horizontais, repostas que não empurrem comunidades para formas rígidas, mas que nasçam com o formato das comunidades e se repliquem conforme a efetividade. Precisamos aprender a errar, ou do contrário viveremos sempre deslocados perante uma verdade pré-fabricada, que nos afasta uns dos outros e do palco social.

Curiosamente, quando falamos em ir além do “Estado”, da necessidade da livre iniciativa, recorremos ao “mercado”, sem nos darmos conta da relação indissociável dos dois. Logo, a construção de novas respostas que rompam com os modelos atuais, requer o questionamento do coração pulsante da nossa sociedade capitalista: a produção de mercadoria. Críticas restritivas e respostas pontuais e isoladas se chocarão e serão esmagadas do contrário. É evidente que o atual papel da escola não é formar pessoas dotadas de senso crítico, capazes de repensar e reorganizar a sociedade, mas não mais do que formar mão de obra funcional, uma classe trabalhadora que seja incapaz de sobreviver que não por meio das instituições e do mercado. Será a “boa educação” aquela que permite ao educado ser explorado por um salário melhor? Ter por meio do consumismo, acesso a mais recursos materiais, produzidos com a degradação do meio ambiente e sociedade? Embarcar de primeira classe nesse avião em queda livre que chamamos de sociedade?!

Píi, grupo Crítica Social, dezembro de 2015.

O que é, afinal, a reorganização escolar?

O que é, afinal, a reorganização escolar?

Trata-se de uma reforma do governo estadual de São Paulo, que pretende separar as escolas por ciclos e readequar o número de alunos por escola. É apresentada, pelos gestores educacionais, como uma simples “medida técnica” em benefício da educação pública paulista. Os mesmos acusam aqueles que lutam contra ela de ter pretensões “políticas”. A palavra “Política” tornou-se, para eles, um palavrão a ser pronunciado com nariz torto e cara torcida. Talvez os gestores tenham sido amamentados com glicerina pelas suas mães, afinal, eles se dizem “neutros” e “isentos”de interesses.

Na realidade, tal reforma implica em fechar aquelas escolas que estão abaixo de uma suposta capacidade definida politicamente (excesso de “capacidade ociosa”); e transferir alunos para outras escolas – superlotando-as. Nada mais significa do que isso – um ataque terrorista sobre o direito ao ensino da população. Na realidade, trata-se de uma redução das despesas com educação – que ocorre ao mesmo tempo em que o governo investe na construção de escolas particulares e perdoa grandes empresários que lhe devem milhões. Isso significa reduzir a parcela de riqueza social – em termos de valor – que a classe trabalhadora recebe na forma de um salário indireto. Educação, saúde, serviços públicos, são salário indireto incorporado à força de trabalho da população trabalhadora. De fato, são também infra-estruturas para tornar os trabalhadores mais produtivos em termos capitalistas – e no caso das escolas, os futuros trabalhadores.

Quando se reduz os gastos com educação, se trata de produzir mão de obra com menos custos, portanto, baratear esta preciosa mercadoria, a única que gera valor econômico. Tal reforma terá, diretamente, o efeito de precarizar a educação, reduzir sua qualidade, aumentando a violência escolar, sobrecarregando o trabalho docente, deteriorando ainda mais as estruturas escolares. E também terá o efeito indireto, depois, de transformar estes alunos em uma força de trabalho ainda mais barata.

É exatamente a percepção disto, mesmo que intuitiva e não teórica, que levou os alunos e comunidades às ocupações de escolas. Trata-se de luta de classes, puramente. A crise capitalista – causada pela terceira revolução industrial, que substitui cada vez mais o trabalho humano pelo trabalho morto das máquinas, e a base de valorização geral da economia diminui – força a uma economia da miséria, ou uma economia na base da porcaria. Mundialmente os direitos trabalhistas são atacados, e os gastos sociais são cortados, gerando protestos. A educação entra neste abate generalizado. É essa a realidade na França, Argentina, México, Chile, e Brasil. Cada dia mais pessoas são declaradas como não-rentáveis, excluídas da socialização capitalista em crise, e legadas ao poder disciplinador do cassetete.

Como podemos perceber, tal reorganização escolar é um completo ataque político do Estado e dos gestores capitalistas à classe trabalhadora, apesar de seus promotores jurarem que agem apenas de forma “técnica” e “não-política”. A quem eles enganam? O que é mais político do que isso? Corta-se a migalha civilizatória capitalista, ao mesmo tempo em que cinco rapazes são fuzilados sem defesa no Rio de Janeiro. Já vivemos em um estado fascista. Porém, isso pode detonar um efeito colateral inesperado: um amplo processo de resistência social, o retorno do espectro da luta de classes. O fantasma do conflito de classes surge para perturbar a noite de Natal do Sr. Scrooge.

Sobre a esquerda e as esquerdas

Sobre a esquerda e as esquerdas

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Texto em 4 partes, de Autoria de João Bernardo, publicado em Passa Palavra em Abril-Maio de 2014, que consideramos essencial ao debate de formação política pela imensa relevância das questões que levanta.

(1ª parte)

http://passapalavra.info/category/ideias-debates

27 de abril de 2014
Categoria: 
Ideias & Debates

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Que me perdoem os amigos e mestres!

À medida que o processo produtivo capitalista nos apresenta um contexto em que, por exemplo no Brasil, quase 90% dos trabalhadores não se encontram na produção direta, vivemos numa sociabilidade em que, em grande medida, a materialidade não faz parte da consciência social. Não produzimos mais nada do que adquirimos como mercadorias, nossas necessidades se transformaram na necessidade absoluta da produção de valor – capital por excelência. A materialidade não mais diz respeito à experiência histórica da relação de vida e morte com a natureza. O humano não é mais entendido como uma espécie dialética com o mundo da natureza.