Relações de Poder na Escola

Relações de Poder na Escola

Reproduzimos aqui o brilhante texto de Maurício Tragtenberg, de 1985, que permanece impressionantemente atual em face das lutas travadas na Educação Pública.

Professores, alunos, funcionários, diretores, orientadores. As relações com todos estes personagens no espaço da escola reproduzem, em escala menor, a rede de relações que existe na sociedade.

Isso não é novidade. O que interessa é conhecer como essas relações se processam e qual o pano de fundo de idéias e conceitos que permitem que elas se realizem de fato. A nós interessa analisar a escola através de seu poder disciplinador. Conforme diz o pensador francês Michel Foucault, a escola é o espaço onde o poder disciplinar produz o saber.

Essa situação surgiu no século XIX com a instituição disciplinar que consiste na utilização de métodos que permitem um controle minucioso sobre o corpo do cidadão através dos exercícios de domínio sobre o tempo, espaço, movimento, gestos e atitudes, com uma única finalidade: produzir corpos submissos, exercitados e dóceis. Tudo isso para impor uma relação de docilidade e utilidade.

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Na escola, ser observado, olhado, contado detalhadamente passa a ser um meio de controle, de dominação, um método para documentar individualidades. A criação desse campos documentário permitiu a entrada do indivíduo no campo do saber e, logicamente, um novo tipo de poder emergiu sobre os corpos.

Os efeitos do poder se multiplicam na rede escolar devido à acumulação cada vez maior de novos conhecimentos adquiridos a partir da entrada dos indivíduos no campo do saber. Conhecer a alma, a individualidade, a consciência e comportamento dos alunos é que tornou possível a existência da psicologia da criança e a psico-pedagogia.

As áreas do saber se formam a partir de práticas políticas disciplinares, fundadas na vigilância. Isso significa manter o aluno sob um olhar permanente, registrar, contabilizar todas as observações e anotações sobre os alunos, através de boletins individuais de avaliação, ou uniformes-modelo, por exemplo, perceber aptidões, estabelecendo classificações rigorosas.

A prática de ensino em sua essência reduz-se à vigilância. Não é mais necessário o recurso à força para obrigar o aluno a ser aplicado, é essencial que o aluno, como o detento, saiba que é vigiado. Porém há um acréscimo: o aluno nunca deve saber que está sendo observado, mas deve ter a certeza de que poderá sê-lo sempre.

As normas pedagógicas têm o poder de marcar, salientar os desvios, reforçando a imagem de alunos tidos como ‘problemáticos’, estigmatizados como o ‘negrão’, o ‘índio’, o ‘maloqueiro’ ou o morador da ‘favela’. A escola, ao dividir os alunos e o saber em séries, graus, salienta as diferenças, recompensando os que se sujeitam aos movimentos regulares impostos pelo sistema escolar. Os que não aceitam a passagem hierárquica de uma série a outra são punidos com a ‘retenção’ ou a ‘exclusão’.

A escola se constitui num centro de discriminação, reforçando tendências que existem no “mundo de fora”. O modelo pedagógico instituído permite efetuar vigilância constante. As punições escolares não objetivam acabar ou  ‘recuperar’ os infratores. Mas, ‘marcá-los’ com um estigma, diferenciando-os dos ‘normais’, confiando-os a grupos restritos que personificam a desordem, a loucura ou o crime.

Dessa forma a escola se constitui num observatório político, um aparelho que permite o conhecimento e controle perpétuo de sua população através da burocracia escolar, do orientador educacional, do psicólogo educacional, do professor ou até dos próprios alunos.

É a estrutura escolar que legitima o poder de punir, que passa a ser visto como natural. Ela faz com que as pessoas aceitem tal situação. É dentro dessa estrutura que se relacionam os professores, os funcionários técnicos e administrativos e o diretor.

É necessário situar ainda que a presença obrigatória com o ‘Diário de Classe’ nas mãos do professor, marcando ausências e presenças nuns casos, atribuindo “meia falta” ao aluno que atrasou uns minutos ou saiu mais cedo da aula, é a técnica de controle pedagógico burocrático por excelência herdada do presídio. Esse professor é visto como encarregado de uma ‘missão educativa’ por uns; como ‘tira’ e ‘cão de guarda’ da classe dominante por outros, ‘contestador e crítico’ por muitos.

Não há dúvida que a escola, em qualquer sociedade, tende a renovar-se e ampliar seu âmbito de ação, reproduzir as condições de existência social formando pessoas aptas a ocupar os lugares que a estrutura social oferece. Com a religião e o esporte, a educação pode se constituir num instrumento do poder e, nessa medida, o professor é o instrumento da reprodução das desigualdades sociais em nível escolar.

No seu processo de trabalho, o professor é submetido a uma situação idêntica ao proletário, na media em que a classe dominante procura associar educação ao trabalho, acentuando a responsabilidade social do professor e de seu papel como guardião do sistema. Nesse processo o professor contratado ou precário (sem contrato e sem estabilidade) – mais de 85 mil só no Estado de São Paulo – substitui o efetivo ou estável, conforme as determinações do mercado, colocando-o numa situação idêntica ao proletário.

O professor é submetido a uma hierarquia administrativa e pedagógica que o controla. Ele mesmo, quando demonstra qualidades excepcionais, é absorvido pela burocracia educacional para realizar a política do Estado, portanto, da classe dominante em matéria de educação. Fortalecem-se os célebres ‘órgãos’ das Secretarias de Educação em detrimento do maior enfraquecimento da unidade escolar básica.

Na unidade escolar básica é o professor que julga o aluno mediante a nota, participa dos Conselhos de Classe onde o destino do aluno é julgado, define o Programa do Curso nos limites prescritos, prepara o sistema de provas ou exames. Para cumprir essa função ele é inspecionado, é pago por esse papel de instrumento de reprodução e exclusão.

É nas escolas particulares de classe alta, ao ultrapassar a entrada do colégio que o professor perde seus direitos em função das normas impostas e do papel a desempenhar. Mestres e alunos submetem-se a esse inconsciente coletivo transmitido por herança cultural: um ‘respeitável’ professor não fala de sua vivência pessoal por temer ser considerado medíocre. O aluno, por sua vez, espera do professor certo tipo de comportamento, seu desprezo ou sua admiração.

A própria disposição de carteiras em sala de aula reproduz as relações de poder: o estrado que utiliza acima dos ouvintes, estes sentados em cadeiras linearmente definidas próximas a uma linha de montagem industrial, configuram a relação ‘saber/poder’ e ‘dominante/dominado’.

O professor subordina-se às autoridades superiores, essa submissão leva-o a acentuar uma dominação compensadora. Delegado dessa ordem hierárquica junto aos estudantes, ele é símbolo vivo dessa subordinação, o instrumento da submissão. Seu papel é impor a obediência. Na relação do professor com a classe, encontram-se dois adolescentes: o adolescente aluno a quem ele deve educar e o adolescente reprimido que carrega consigo.

O poder professoral manifesta-se através do sistema de provas ou exames onde ele pretende avaliar o aluno. Na realidade está selecionando, pois uma avaliação de uma classe pressupõe um contato diário com a mesma, prática impossível no atual sistema de ensino.

A disciplinação do aluno tem no sistema de exame um excelente instrumento: a pretexto de avaliar o sistema de exames. Assim, a avaliação deixa de ser um instrumento e torna-se um fim em si mesma. O fim, que deveria ser a produção e transmissão de conhecimentos, acaba sendo esquecido. O aluno submete-se aos exames e provas. O que prova a prova? Prova que o aluno sabe como fazê-la, não prova seu saber.

O fato é que, na relação professor/aluno, enfrentam-se dois tipos de saber, o saber do professor inacabado e a ignorância do aluno relativa. Não há saber absoluto nem ignorância absoluta. No fundo, os exames dissimulam, na escola, a eliminação dos pobres que se dá sem exame. Muitos deles não chegam a fazê-lo, são excluídos pelo aparelho escolar muito cedo, veja-se o nível de evasão escolar na 1ª série do 1º grau e nas últimas séries do 1º e 2º grau.

O exame permite a passagem de conhecimento do professor ao aluno e a retirada de um saber do aluno destinado ao mestre. O exame está ligado a certo tipo de formação de saber e a certo tipo de exercício de poder. O exame permite também a formação de um sistema comparativo que dá lugar a descrição de grupos, caracterização de fatos coletivos, estimativa de desvios dos indivíduos entre si.

Qualquer escola se estrutura em função de uma quantidade de saber, medido em doses, administrado homeopaticamente. Os exames sancionam uma apropriação do conhecimento, um mau desempenho ocasional, um certo retardo que prova a incapacidade do aluno em apropriar-se do saber. Em face de um saber imobilizado, como nas Tábuas da Lei, só há espaço para humildade e mortificação. Na penitência religiosa só o trabalho salva, é redentor: portanto, o trabalho pedagógico só pode ser sado-masoquista.

Não é por acaso que existe relação entre a estrutura simbólica da religião com a escolar. Elas reforçam a estrutura simbólica pela qual se realiza a estrutura de classe. A mesma relação de indignidade existente entre o pecador e a religião, é a existente entre os alunos e o saber. O aluno é visto como se tivesse uma essência inferior à do mestre, como o homem o é ante a figura de Deus.

O trabalho mortificante no plano pedagógico – a ansiedade em saber se foi aprovado ou reprovado no exame – é a via da redenção, a expiação da indignidade. É o único caminho pata atingir o Templo do Saber, da Graça e da Riqueza.

Para não desencorajar os mais fracos de vontade surgem os métodos ativos em educação. A dinâmica de grupo aplicada à educação alienou-se quando colocou em primeiro plano o grupo em detrimento da formação. A utilização do pequeno grupo como técnica de formação deve ser vista como uma possibilidade entre outras. Tal técnica não questiona radicalmente a essência da pedagogia educacional. O fato é que os grupos acham-se diante de um monitor; aqueles caracterizam o não saber e este representa o saber.

Ao invés de colocar como tarefa pedagógica dar um curso e o aluno recebê-lo, por que não colocá-lo em outros termos: em que medida o saber acumulado e formulado pelo professor tem chance de tornar-se o saber do aluno?

Vistos estaticamente a escola e o professor, ele aparece como guardião de um saber estratificado, como o sacerdote das salvaguardas educacionais, como o gerente de sua distribuição, como o profeta da necessidade do trabalho e do mérito vinculado a um esforço redentor, finalmente, da vontade que tudo salva.

Porém, há o outro lado da moeda. O professor é agente da reprodução social e, pelo fato de sê-lo, também é agente da contestação, da crítica. O predomínio das funções de reprodução e de crítica professoral dependem mais do movimento social e sua dinâmica, que se dá na sociedade civil, fora dos muros escolares.

Em períodos de mudança social, o professor, enquanto assalariado ou funcionário do Estado, se organiza contra a deterioração de suas condições de trabalho. Nesse momento ele contesta o sistema. Porém, para contestar o sistema é necessário estar inserido nele numa função produtiva.

É o que se dá com o operário. Reproduzindo o capital, ponto terminal do trabalho acumulado, tem ele condições de contestar o capital mediante sua auto-organização e ações práticas. Desvinculado da produção pouco pode fazer. Greve de desempregados é coisa difícil.

Por tudo isso a escola é um espaço contraditório: nela o professor se insere como reprodutor e pressiona como questionador do sistema, quando reivindica. Essa é a ambigüidade da função professoral.

A possibilidade de desvincular saber de poder, no plano escolar, reside na criação de estruturas horizontais onde professores, alunos e funcionários formem uma comunidade real. É um resultado que só pode provir de muitas lutas, de vitórias setoriais, derrotas, também. Mas sem dúvida a autogestão da escola pelos trabalhadores da educação – incluindo os alunos – é a condição de democratização escolar.

Sem escola democrática não há regime democrático; portanto, a democratização da escola é fundamental e urgente, pois ela forma o homem, o futuro cidadão.

MAURÍCIO TRAGTENBERG

Fonte: Educação & SociedadeRevista Quadrimestral de Ciências da Educação – Ano VII – Nº 20 – Jan/Abril de 1985 (1ª reimpressão – setembro de 1986). Campinas: CEDES/Unicamp; São Paulo: Cortez Editora, pp. 40-45.

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