Em defesa da teoria do valor de Marx

Otto L.

A teoria do valor-trabalho de Marx é altamente controversa. Nas academias e meios de economistas, gera polêmicas e provoca as mais aviltantes paixões do espírito humano. Cabe aqui dizer algumas palavras. Porque tal reação? Porque tal teoria provoca a ira dos mais conservadores, dos defensores da Escola Austriaca, da nova direita liberal brasileira?

Em primeiro lugar, a grande questão que se colocava no tempo de Marx era explicar o lucro, os juros e a renda da terra, ou seja, o sobreproduto econômico e as leis do crescimento do Capital. Diversas teorias atribuíam capacidade de geração espontânea de rendas, um verdadeiro fetichismo mágico sobre o dinheiro e o Capital.

Marx afirmou como solução que o lucro (seja industrial, comercial ou agrícola), os juros e a renda da terra são na verdade partes em que se divide a mais-valia (mais-valor). E a origem deste sobreproduto econômico só poderia ser o mais-trabalho, ou seja, o tempo de trabalho excedente extraído dos trabalhadores, separados dos meios de produção e socialmente coagidos a vender sua força de trabalho (que gera um valor maior do que tem) em troca de um salário. A base deste raciocínio é a teoria do valor-trabalho, de que a substância do Valor nada mais é que trabalho humano abstrato (sem qualidades específicas) cristalizado em mercadoria. E a grandeza do Valor seria, assim, o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de uma mercadoria, numa sociedade de produtores de mercadorias, onde o produto do trabalho humano se apresenta sob a forma de mercadoria, produzido para a troca. Logo, a teoria do Valor-trabalho, logicamente, se desdobra no entendimento de que todo sobreproduto econômico é na verdade apropriação do tempo dos indivíduos, ou seja, exploração. Admitir a teoria do Valor-trabalho implica admitir que o capitalismo se fundamenta na exploração e coerção, ou seja, tem conseqüências políticas subversivas.

Em segundo lugar, ao admitir que a geração de valor se dá através do trabalho, se está a admitir que, com o crescimento proporcional da contribuição do trabalho morto (máquinas e matérias primas, ou seja, o capital constante, que entra e sai num ciclo da produção com seu valor conservado de igual tamanho) em relação ao trabalho vivo (custo da força de trabalho, o capital variável) na produção das mercadorias, implica matematicamente a redução proporcional do crescimento do lucro e da mais-valia, ou seja, que a base de valorização do Capital vai ficando historicamente cada vez mais estreita, empurrando o Capital para seus limites lógicos. Essa contradição explode e se resolve nas crises cíclicas e expansão dos mercados, para depois retornar sempre de forma ampliada. Toda inovação tecnológica gera efeitos críticos na reprodução do Capital e agrava suas contradições. E a longo prazo histórico, isto implica que o Capital não pode ter capacidade de acumulação infinita, mas é um ente histórico, uma relação social finita. Obviamente, não se pode atribuir a Marx escatologias ou determinismos nesta análise, mas sim entender leis tendenciais. Admitir a teoria do valor trabalho implica, portanto, admitir o caráter social, não-natural, e histórico do capitalismo, o que também tem conseqüências políticas sérias.

Ao invés, alegam os críticos da teoria do valor-trabalho que o valor se formaria na circulação, e não na produção. E que a teoria de Marx seria uma grande basófia, uma metafísica, um surto de delírios espiritualista, um apriorismo. O Valor (que confundem com preço) se estabeleceria como média meramente quantitativa na troca de mercadorias, e o mercado se moveria meramente pela lei da oferta e da procura e pelo princípio de maximização dos ganhos. Aqui já não há mais história, e note-se bem, nem relação social. As coisas falam por si, teriam propriedade natural de ser mercadorias e ter valor à luz (assim como braços e pernas), e toda relação humana, inclusive a subjetividade, seria a de um homo economicus – a bela alma de mascate e a competição canina seriam a mais suprema manifestação da natureza humana, sempre à espera de um leviatã ou uma moral que a dome. Daí para teorias geneticistas e a biologização do social, é um passo.

Obviamente, além de matar a história, tal forma de raciocínio se restringe à lógica formal mais rasa e instrumentalista, incapaz de entender a realidade em níveis distintos (do cotidiano imediato, ao particular dos conjuntos, ao social mais geral e universal), ou seja, da interação entre níveis, compreendida pela famigerada semente de dragões, a dialética. As categorias apresentariam-se, para eles, como algo natural, dado, e imóvel. A relação social capitalista, como algo eterno. O sobreproduto econômico é explicado e entendido pelos nossos alquimistas econômicos através das mais fantásticas teorias da geração espontânea – “é o mercado”, “dedução”, “subjetividade do consumidor”, etc. Qualquer análise mais séria sobre organização científica do trabalho desmentiria tais afirmações. Mesmo as teorias gestoriais, voltadas à melhor forma de uso dos “recursos humanos” pelo aumento da produtividade, entram em gritante contradição com os salmos cantarolados pelos sacerdotes da economia em crescimento.

Estes sempre alegam, como argumento, contra a teoria do valor, utilizando o preço como argumento e ponto de partida. Não percebem a autonomização da esfera do dinheiro em relação ao valor das mercadorias. Não entendem o caráter essencial do dinheiro como reflexo do valor das mercadorias, demonstrado por Marx em seu difícil primeiro capítulo de O Capital, onde ele já resolve logicamente a questão relativa a valor e preço. O valor existe como relação social, o preço como sua forma de manifestação particular e sujeita a variações – onde o valor não se reflete de maneira clara. O dinheiro funcionaria como uma cortina sobre o valor, e o movimento da economia assume um caráter místico e misterioso. Mas a lei do valor atua de forma tão férrea, que as crises do capital se manifestam de forma cíclica e regular, sempre relacionadas a transformações de produtividade.

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Também é comum o argumento de que o valor se estabeleceria como média social das trocas, como algo casual, relativo. O que não se vê aqui é que, uma mercadoria só pode possuir diferentes valores de troca (seu valor em casacos, em café, em ferro, etc) todos iguais entre si, se existir uma relação abstrata comum a todos os produtores e bem enfiada na cabeça destes a ponto de lhes parecer tão natural quanto a lei da gravidade. Os produtores só podem trocar entre si e mesurar as coisas se as reduzirem a um denominador comum, ou seja, se conseguirem igualar as coisas diferentes qualitativamente. E esse algo comum, igual, seria o trabalho humano e seu tempo de duração. Como poderia se estabelecer um mercado entre produtores independentes (mais modernamente, unidades particulares de produção) sem que todos possuam e atuem automaticamente segundo um parâmetro social e cultural comum, inconsciente?

Se afirma a formação e estabelecimento dos valores no mercado, mas isto entra em contradição aberrante com a obsessão que os gestores de empresa possuem em fazer a economia de tempo e aumentar a produtividade. Como os críticos da teoria do valor-trabalho podem explicar esta contradição?

Ainda, podem alegar que a teoria do Valor-trabalho entra em contradição com a teoria da mais-valia relativa de Marx. Ou seja, dizem, como para Marx quantidades iguais de tempo de trabalho (trabalho simples, esquecem de dizer, o que Marx ressaltou bem) deveriam sempre valer o mesmo, e depois Marx ousaria assassinar a lógica e dizer que trabalho complexo vale uma quantidade multiplicada de trabalho simples? Deixemos essa resposta à Toyota, que em 1906 já colocava um operário para operar seis teares simultaneamente, e que após 1950, aplicou o mesmo mecanismo polivalente à indústria automobilística, aumentando imensamente seus ganhos ao atribuir múltiplas funções aos mesmos indivíduos, reduzindo os poros do seu tempo de trabalho. Ou às empresas de ônibus, que mandam embora o cobrador, instalam a catraca ao lado do motorista, que passa a exercer duplo trabalho, o que aumenta os ganhos empresariais – o que ainda não as impede de, na sua sanha, forçar o mesmo a jornada dupla (e amparados pelas suas representações sindicais, com freqüência). Estes e uma infindável lista de exemplos concretos. Quando parte da força de trabalho é eliminada de um setor, e outra parte que permanece absorve suas funções, o lucro da empresa cresce proporcionalmente ao que se deixou de gastar com força de trabalho (e a intensidade de exploração dos que ficam cresce exponencialmente). Mas talvez os críticos da teoria do valor trabalho então aleguem que os ganhos sejam produzidos pelo maquinário tecnológico ampliado que aumentou a produção. Só talvez esqueçam de dizer que as máquinas não se mexem sozinhas… 

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