Sobre a esquerda e as esquerdas (compilação)

Caros amigos

Para fins de debate e estudo, organizamos uma compilação do texto de João Bernardo “Sobre a esquerda e as esquerdas”. Isso não deixa a leitura do texto completo menos obrigatória e urgente.

Sobre a esquerda e as esquerdas

Por João Bernardo

http://passapalavra.info/category/ideias-debates

1ª Parte

27 de abril de 2014

Por que motivo continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com este nome?

I

1.

As grandes derrotas que temos sofrido não se deveram principalmente aos ataques vindos de fora, aos inimigos explícitos, mas sobretudo ao inimigo insidioso, gerado pelo desenvolvimento das contradições internas da esquerda. Por isso a crítica da esquerda pela esquerda é pelo menos tão urgente como a crítica da direita pela esquerda.

Reina na esquerda um conformismo que garante o conforto mental, enquanto a grande preocupação deveria ser o estudo das causas das derrotas.

2.

O capitalismo goza hoje de uma indisputada hegemonia.

Por todo o mundo, a esquerda governamental perdeu a identidade e nada de significativo a diferencia da direita. Abandonando quaisquer transformações económicas substanciais e restringindo-se nesse campo aos paliativos, a esquerda governamental concentrou-se nas questões de costumes, mas mesmo aí deixa a desejar. Numa época recente ela ainda se singularizava por adoptar uma certa latitude moral, enquanto a direita era moralmente restritiva. Agora já nem isto sucede.

A mesma perda de identidade atingiu a esquerda exterior às instituições estatais, que passou a repetir e desenvolver temas gerados na transição do século XVIII para o século XIX pela extrema-direita anticapitalista, conservadora ou radical. Nesta deslocação de sentidos e de referências, a esquerda exterior às instituições estatais, que em várias épocas constituiu uma efectiva ameaça, não passa agora de uma irrelevância.

3.

Está em curso uma profunda transformação orgânica da classe trabalhadora, resultante da convergência de seis processos.

  1. A mundialização da classe trabalhadora praticamente extinguiu os sistemas pré-capitalistas e se antes tínhamos formações económico-sociais constituídas por vários sistemas sob a hegemonia do modo de produção capitalista, temos hoje um só modo de produção capitalista com variantes internas.

  2. b. A redução de todos os tipos de exploração ao sistema de exploração capitalista ocorreu muito mais rapidamente no plano económico do que no plano cultural, em que persistem tradições herdadas de sistemas pré-capitalistas entretanto assimilados pelo capitalismo.

  3. O nacionalismo hoje difundido na esquerda é a expressão dessa falsa consciência. E este nacionalismo tornar-se-á tanto mais estridente quanto mais se confinar ao plano ideológico e cultural, tentando compensar assim a ausência de um substrato económico

  4. Porém, a maioria dos antigos profissionais liberais convertidos em trabalhadores, em vez de assumir a consciência deste processo, pelo contrário, reage contra ele mediante uma falsa consciência que implica um comportamento elitista relativamente aos trabalhadores assumidos como tais.

  5. Gerou-se assim uma cisão entre a consciência social dos trabalhadores precários e a dos trabalhadores integrados num assalariamento formal e de longo prazo.

  6. A produção de bens imateriais desenvolve-se cada vez mais. Ora, apesar de o capitalismo ter sempre incluído serviços e de as relações de exploração se definirem em termos de tempo de trabalho e não de fabrico de objectos palpáveis, divulgou-se a noção de que a diminuição da percentagem dos trabalhadores encarregues de fabricos materiais corresponderia a um declínio da própria classe trabalhadora, o que implica que os produtores de bens imateriais sejam concebidos como exteriores à classe trabalhadora.

A convergência destes processos leva uma grande parte dos trabalhadores, ao mesmo tempo que perde a noção antiquada da classe, a não adquirir uma noção modernizada e pertinente. Enquanto a classe trabalhadora atravessa uma profunda transformação orgânica, que está longe de chegar ao seu termo, as ideologias hegemónicas na esquerda actual reflectem esta transformação em modalidades de falsa consciência.

Houve épocas em que alguns intelectuais contribuíram decisivamente para a formação e a generalização de uma consciência de classe trabalhadora, mas sucede hoje o contrário e a nova consciência de classe, quando ressurgir, virá da multiplicidade de elaborações silenciosas, resultantes de uma acumulação de pequenas e grandes lutas e alheias ao discurso intelectual.

4.

Uma teoria revolucionária não é apenas uma teoria que revoluciona o panorama intelectual. No que diz respeito à sociedade, é também uma teoria da revolução. Não existe actualmente teoria social revolucionária, em nenhum destes dois sentidos.

  1. O marxismo pereceu devido a duas implosões sucessivas: uma resultou da burocratização da revolução russa e do estabelecimento do regime soviético como capitalismo de Estado e a outra deveu-se à extinção dos regimes de tipo soviético e à sua fragmentação geopolítica.

  2. O anarquismo pereceu em virtude de um duplo processo, repetido ao longo do tempo: a dissolução que o atinge quando se confunde com uma liberdade indeterminada ou com um naturismo primitivista e o congelamento que o imobiliza num museu de relíquias veneradas e indiscutidas.

5.

Desde a sua origem, antes ainda da génese do marxismo, que na esquerda existe um acentuado pendor para o estatismo. Não se trata para essa esquerda de alterar as relações sociais de trabalho, mas de concentrar no Estado os principais mecanismos de decisão económica. Esta é a esquerda que corresponde exclusivamente aos interesses da classe dos gestores, cujo acesso ao capital passa pelo exercício de funções administrativas e não pela detenção de propriedades.

A armadura jurídica do capitalismo pode assim ser discutida pela esquerda no aparelho de Estado e eventualmente remodelada, enquanto nas empresas as relações capitalistas de trabalho se mantêm ou são mesmo reforçadas.

6.

Existe uma subespécie de eternos candidatos a gestores que têm como programa a ocupação do poder de Estado, mas com ilusões tais que nunca podem ser satisfeitas. Distinguem-se dos outros não pelos objectivos últimos, que em ambos os casos é a estatização da economia, mas pela ausência de noções práticas quanto ao caminho a percorrer. E como a sua vocação para o fracasso os leva a imaginarem-se revolucionários, consideram que é o sucesso eleitoral que classifica os outros como reformistas. Na verdade, trata-se de uma esquerda governamental in partibus, que só parece exterior às instituições estatais porque não consegue inserir-se nelas.

2ª parte

4 de maio de 2014

O pós-modernismo deve ser visto como a inversão da última das Teses sobre Feurbach. 

II

7.

Existe outra esquerda, que hoje tem o ascendente e se define como pós-moderna.

O pós-modernismo generalizou a noção de narrativa. A realidade é assimilada pelo discurso sobre a realidade. O que passa a ter importância é o controlo sobre o discurso, substituindo a acção sobre o real. Esta concepção tem a sua expressão prática — ou, mais exactamente, de negação da prática — na redução da política às redes sociais, enquanto disputa de narrativas.

Esta noção de narrativa adquiriu com o pós-modernismo um estatuto de fundamento epistemológico. Negando pertinência à avaliação da distância entre a realidade e uma narrativa da realidade e pensando que a realidade é um constructo, reduz-se a realidade, ou pelo menos a realidade perceptível, ao discurso sobre a realidade. Mas a realidade pode desenvolver-se de maneira oposta à narrativa, que fica então convertida numa falsa consciência.

O maior interesse de cada narrativa reside na distância que a separa, ou não a separa, da realidade. A narrativa válida é aquela que toma essa distância como objecto de reflexão.

Para dirigir as massas tenho de arrancá-las à apatia», explicou Hitler. «As massas só se deixam conduzir quando estão fanatizadas. Apáticas e amorfas, as massas representam o maior dos perigos para qualquer comunidade política. A apatia constitui uma das formas de defesa das massas. É um refúgio provisório, um entorpecimento de forças que de súbito explodirão em acções e reacções inesperadas». Outro irrefreável demagogo, Juan Perón, tentou explicar aos patrões reunidos na Bolsa do Comércio de Buenos Aires em Agosto de 1944 que «a massa mais perigosa é a massa inorgânica. A experiência moderna demonstra que as massas operárias melhor organizadas são, sem dúvida, as que podem ser dirigidas e melhor conduzidas em todos os domínios”.

Teve razão Karl Jaspers quando, depois da guerra, classificou “o silêncio» como «o último recurso de quem se encontra reduzido à impotência» e adiantou que «se dissimula o silêncio para reflectir na maneira como se poderia restabelecer a situação”.

8.

O pós-modernismo exige a conversão do newspeak em politicamente correcto porque o seu apêndice multiculturalista constitui uma colossal hipocrisia, que para se disfarçar requer o puritanismo da linguagem.

  1. Os multiculturalistas esquecem, ou pretendem fazer esquecer, que as culturas e identidades étnicas foram, todas elas, originariamente exclusivistas e cada uma nasceu da assimilação e liquidação de outras anteriores.

Nem o verniz do politicamente correcto consegue disfarçar o carácter inconciliável de culturas ou identidades que o multiculturalismo apresenta como igualmente respeitáveis, por exemplo a homossexualidade masculina e as culturas populares, que em muitos casos incluem um componente de homofobia.

Como harmonizar a apologia do movimento negro e a apologia do movimento gay?

Não falta quem seja activamente feminista na universidade que frequenta, mas aceite sem tugir nem mugir a subserviência tradicional das mulheres em povos índios.

  1. A cultura greco-romana resultou de uma fusão de todas estas proveniências. Em segundo lugar, o presumido eurocentrismo é um anacronismo porque no século XIX o capitalismo assimilou e extinguiu a diversidade de culturas distintas existentes no continente europeu para formar uma nova cultura única, que nunca foi exclusivamente europeia.

Ao longo da história, só o capitalismo se mostrou capaz de admitir a multiplicidade de origens culturais como um factor constitutivo permanente.

Só a pintura aborígene australiana foi assimilada tardiamente, já quando o século XX ia adiantado. Todas estas lições passaram a fazer parte integrante de uma arte moderna que não deve definir-se por qualquer localização geográfica, mas apenas pela situação temporal, a arte universal da sociedade global em que vivemos. Não foi uma cultura europeia que se expandiu, foi uma pluralidade de culturas de origem diversa que se fundiu para criar a cultura mundial da nossa época.

Foi nas metrópoles que se gerou e desenvolveu a cultura capitalista mundialmente integradora; e mais tarde, à medida que o capitalismo se expandiu, as populações colonizadas absorveram de volta aquela cultura e deram-lhe novos desenvolvimentos, conjugando a irradiação das metrópoles com as iniciativas locais. A formação dos modernismos na América Latina é um bom exemplo deste vaivém fecundo.

  1. Tudo somado, os multiculturalistas propõem-se preservar apenas identidades e culturas já estabelecidas e recusam a priori uma cultura em processo de construção, a de uma classe trabalhadora mundial e unificada. Eles conseguem fazer pouco ou quase nada, mas conseguem impedir muito. É esta a sua utilidade histórica para o capitalismo actual. O multiculturalismo é o sucedâneo do nacionalismo na época da globalização.

  2. É a luta do futuro contra a conversão do presente num mosaico de tradições.

9.

O pós-modernismo deve ser visto como a inversão da última das Teses sobre Feurbach. Transformar o mundo é considerado pelo pós-modernismo como um projecto totalitário e centrado no sujeito — para mais um sujeito histórico — que quer modelar tudo à sua imagem. Mesmo interpretar o mundo é considerado perigoso, já que poderá ter algum efeito sobre a prática. A grande narrativa é odiada e substituída pela proliferação de narrativas multifacetadas.

Ora, só um projecto global pode opor-se à globalidade do existente.

10.

Sem a ambição de transformar o mundo fica votada ao fracasso a busca de uma acção revolucionária.

A razão instrumental é a arquitecta das grandes transformações e tem uma das suas demonstrações práticas nos processos revolucionários.

11.

A razão instrumental é um utensílio intelectual e passou a fazer parte das tecnologias intelectuais que lhe sucederam.

O mesmo se passa com a razão instrumental. Tanto os pensadores e políticos de extrema-direita que primeiro concentraram nela o seu furor como os universitários que seguem as pegadas da Escola de Frankfurt e os filósofos pós-modernos tiveram e têm de recorrer à razão instrumental para assegurar a sua sobrevivência prática numa sociedade em que a actividade produtiva pressupõe a ciência e em que todo o sistema é regido pela crescente divisão do trabalho. O que sucede hoje aos críticos da razão instrumental é que as suas elaborações intelectuais são descoladas do meio prático em que se inserem, o que aliás explica o carácter especulativo e o estilo difuso dessas elaborações. Trata-se ainda de uma modalidade de falsa consciência.

12.

A hegemonia alcançada pela indústria cultural de massas fez com que o universo estético dos revolucionários passasse a ser definido pela low art do pós-modernismo. Aquela arte que antes era ou desejava ser não só a arte da revolução como uma arte revolucionária foi esquecida. E como o carácter de qualquer expressão estética é definido pela sua forma, a submissão à indústria cultural de massas atinge o ponto extremo nas composições musicais em que o texto se pretende revolucionário enquanto a forma obedece aos padrões da banalidade comercial. Esta tensão resultante de um conteúdo impedido de se expressar por uma forma que lhe é contrária revela o pauperismo ideológico e cultural da esquerda. Hoje, neste campo, o principal inimigo é o lugar-comum.

3ª Parte

10 de maio de 2014

Nenhuma forma de organização dispensa uma luta interna permanente contra a burocratização.

III

13.

Enquanto o leninismo ocupou um lugar destacado no movimento operário o fetiche era a organização partidária e tudo o mais lhe era sacrificado. A Terceira Internacional foi uma colossal máquina de soprar o quente e o frio nas lutas conforme fosse mais conveniente para a protecção e o crescimento das suas secções nacionais e depois da segunda guerra mundial os partidos comunistas continuaram a aplicar a mesma orientação. O fetichismo da organização partidária significava na prática a preservação da sua burocracia dirigente, num processo de conversão das vanguardas em elites e de rejuvenescimento das classes dominantes.

14.

O risco hoje é que outras formas de organização sejam fetichizadas. A esterilidade do pós-modernismo no plano da teoria revolucionária é acompanhada pelo fetichismo no plano da organização prática.

  1. Tendo-se desinteressado de transformar o mundo, a esquerda pós-moderna dedica-se à criação de microcosmos paralelos. A afirmação de que tudo o que é pessoal é político tem como corolário a redução do político ao pessoal. O modo de vida tornou-se, por si só, político, o que significa que em vez de mudar o mundo basta viver de certa maneira. Esta nova espécie de militância consiste em pertencer a comunidades onde todos se assemelham ou se esforçam por assemelhar-se nos hábitos e no comportamento.

Em vez de serem um meio de acção, estes microcosmos imunizam a acção.

  1. Outra forma de organização estimada pelo pós-modernismo e apresentada como panaceia é a ocupação de lugares públicos por multidões cujo único meio de inter-relacionamento são as redes sociais.

Em segundo lugar, enquanto estas mobilizações se restringirem a lugares públicos, se mantiverem exteriores aos processos de trabalho e não servirem para desencadear movimentos no interior das empresas, elas deixam incólumes as relações de trabalho vigentes e podem até servir-lhes de legitimação.

15.

Existem formas de organização que são, sempre e em todas as circunstâncias, nocivas para a acção anticapitalista. Mas não existem formas de organização que sejam, sempre e em todas as circunstâncias, benéficas. A este respeito, a garantia funciona só no sentido negativo.

Não existem formas de organização ideais, que as imunizem da recuperação interna por novas burocracias ou externa por forças da direita. Mas existem formas de organização que facilitam a luta contra essas tentativas de recuperação. Afinal, nenhuma forma de organização dispensa uma luta interna permanente contra a burocratização.

16.

O que é ser anticapitalista numa época de expansão do capitalismo? Como é que uma táctica revolucionária a curto prazo pode deixar de ser recuperada e assimilada pelo capitalismo em expansão? Terão os anticapitalistas de se iludir necessariamente a si mesmos?

Estarão os revolucionários da nossa época condenados a operar como Sísifo, erguendo um rochedo só para o deixar cair? É urgente reflectir sobre a acção revolucionária, o que significa que é urgente reconstruir um pensamento revolucionário.

17.

A priori, não me parece que seja possível, na sociedade complexa e diversificada em que vivemos, regressar à situação de um sistema teórico revolucionário único, ou pelo menos hegemónico, como sucedeu nas últimas décadas do século XIX e na primeira década e meia do século XX. Mas devemos criar um quadro teórico comum, que permita o diálogo e a polémica entre várias perspectivas de pensamento revolucionário. Não um sistema, mas um quadro.

Não há actividade científica e progresso científico sem direito ao erro. De início toda a novidade surge como um erro, e o debate e a polémica servem para distinguir o inadequado do exacto. Assim como nas ciências da natureza o debate não é apenas um confronto entre os cientistas, mas entre cada um deles e a respectiva prática ou experimentação laboratorial, também na teoria revolucionária não se trata apenas da polémica entre as várias perspectivas, mas do confronto de cada uma delas com a acção prática, o que significa, com os factos da acção prática. Penso ser este o postulado básico de uma democracia revolucionária.

4ª parte

18 de maio de 2014

A classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer exemplos de miséria. 

IV

18.

A maior parte do que agora se denomina esquerda alheou-se do combate ao capitalismo como modo de produção, ou seja, como sistema de relações sociais de trabalho. No entanto, seria este o único sentido do anticapitalismo. A esquerda que não pretenda transformar radicalmente as relações sociais de trabalho limita-se a ser uma das correntes políticas do capitalismo.

A maioria da esquerda actual só se preocupa com o trabalho quando ele não existe. Quero dizer que essa esquerda se inquieta justificadamente com o desemprego e o part-time; mas, injustificadamente, parece esquecer que o assalariamento é o motor da acumulação de capital. É a esquerda do conformismo e não da ruptura. O emprego não é a solução para o desemprego. Só a liquidação do capitalismo poderá solucionar tanto o desemprego como este emprego.

19.

Aliás, a noção de que haveria um «capital produtivo», com raízes nacionais, oposto a um «capital especulativo», de carácter internacional, surgiu originariamente nos meios da extrema-direita europeia nos primeiros anos do século XX e tornou-se um dos elementos constitutivos da ideologia fascista precisamente em virtude do carácter nacionalista que lhe está subjacente.

20.

A ocorrência de graves perturbações na regulação do sistema financeiro foi interpretada pela esquerda como uma crise do capitalismo, quando o que desde há mais tempo se vem a verificar é uma crise no interior do capitalismo, em que os antigos centros entraram em declínio enquanto surgiu um conjunto de novos centros. A reestruturação pós-fordista das relações de produção, geralmente denominada toyotismo, incluindo a flexibilidade suplementar garantida pela subcontratação de fases da cadeia produtiva e a flexibilização das relações de trabalho, marcou o início de um novo ciclo do processo de extorsão de mais-valia e uma etapa superior na acumulação do capital. Nada disto indica uma crise do capitalismo mas, pelo contrário, uma crise da capacidade de resistência dos trabalhadores.

21.

Na clássica dicotomia socialismo ou barbárie, o socialismo não se confronta só com a barbárie do capitalismo. Confronta-se igualmente com a ameaça de barbárie proveniente daquela esquerda ecologista que, pretendendo ultrapassar o capitalismo ou fundar microcosmos paralelos, se propõe restaurar formas sociais e níveis de produtividade pré-capitalistas. Essa esquerda da barbárie acusa a classe trabalhadora de estar integrada no capitalismo, de aceitar a integração e já não desempenhar nenhum papel histórico revolucionário. O que se passa, no entanto, é que a classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer exemplos de miséria. As lutas da classe trabalhadora, tal como têm existido até hoje, são o único obstáculo à fusão daquelas duas barbáries, a barbárie constituída pelo capitalismo e a barbárie promovida pela esquerda ecologista.

22.

É especialmente perverso o argumento de que, tendo o capitalismo atingido um alto grau de produtividade e conseguindo caminhar rumo à abundância, uma crítica radical implicaria a recusa de qualquer tecnologia que sustente a produtividade e a abundância.

Decerto a tecnologia é uma materialização de relações sociais, pelo que a liquidação do capitalismo implicará obrigatoriamente uma nova tecnologia. A classe trabalhadora é dotada de uma estrutura social e de formas de organização interna que podem ir desde as silenciosas até às explícitas, e estas formas, no seu desenvolvimento, imporão uma nova tecnologia. Não se trata aqui apenas de um futuro distante mas já do presente, porque as lutas práticas contra o capitalismo, além da sua expressão social, têm igualmente uma expressão técnica material.

23.

Se pretendermos lutar contra o capitalismo sem correr o risco de cair no socialismo da miséria, a grande questão é: como pode instaurar-se uma organização política igualitária e comunitária numa sociedade e numa economia muito complexas, baseadas na divisão do trabalho e que já não permitem a rotatividade em todas as funções? Este tipo de sociedade não dispensa o mercado nem o dinheiro e exige uma coordenação. Como frequentemente se confundem os conceitos com as palavras e se ignora a diversidade intrínseca dos conceitos sob a aparente uniformidade das palavras, é indispensável verificar o significado de cada um destes três termos.

  1. Os mercados precederam de milénios o capitalismo e, além disso, não pressupõem necessariamente a existência de relações de exploração, como mostram os estudos históricos e antropológicos.

  2. O dinheiro coexistiu com os mais variados modos de produção, incluindo algumas sociedades sem exploração.

Aquelas pessoas que não imaginam a possibilidade de superar o capitalismo sem abolir o dinheiro deveriam meditar sobre as tentativas de supressão do dinheiro levadas a cabo pelos anarquistas na Catalunha e em Aragão durante a guerra civil, que demonstraram, afinal, a plasticidade do dinheiro e o seu ressurgimento nas novas condições sociais.

  1. Uma sociedade complexa, que requer a divisão do trabalho, exige igualmente instituições coordenadoras. No processo de derrube do capitalismo, a rotatividade não pode incluir a esmagadora maioria das funções nem pode presumir-se a ausência de especialização e de divisão do trabalho. A rotatividade deve conceber-se nas funções de direcção, com a condição de a direcção ser entendida como coordenação.

24.

Para que uma sociedade autogerida não leve à barbárie da falta de produtividade e do primitivismo tecnológico é necessário que a complexidade não sirva de pretexto à ignorância e que todos queiram aprender a gerir. Se o interesse e a competência generalizados e uma divisão do trabalho igualitária forem uma utopia irrealizável, então será impossível a autogestão da abundância e teremos de optar entre uma abundância gerida por outros ou a autogestão da miséria. Toda a questão do comunismo é esta.

Ora, o aparecimento do punk-rock constituiu uma colossal ruptura política, afirmando o direito dos que não têm voz a cantar, dos que não têm ouvido a compor, dos que não sabem tocar a tocar. A partir de então não se parou e a ignorância e a inaptidão deixaram de constituir obstáculo às pretensões. A democracia assumiu um novo sentido, não é mais a luta pelo direito a todos aprenderem o que quiserem saber e passou a ser a afirmação de que é desnecessário saber o que quer que seja. A internet é usada como infra-estrutura desta punk-incultura. Tudo o que assim se poderá obter é a autogestão da miséria. Na época da punk-democracia, é desta verdade profunda que deve partir qualquer programa de reforma da esquerda anticapitalista.

Para reconstruir uma esquerda anticapitalista ou, mais exactamente, para reconstruir o anticapitalismo no espaço que hoje se denomina esquerda, temos de partir quase do zero.

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